Como o Bitcoin ganhou valor?
*Esse texto foi originalmente publicado em 2014 no site www.fee.org.
Muitas pessoas que nunca
usaram bitcoin, costumam vê-lo com uma certa confusão.
Por que esse dinheiro mágico da internet tem valor afinal? É apenas um código
de computador que alguém fez.
Considere as críticas dos goldbugs, que tem, por décadas, defendido a ideia de que um verdadeiro sound money deve ser lastreado alguma coisa real, que exista fisicamente e já tenha valor antes de ser usado como dinheiro.
Bitcoin não se qualifica, certo?
Bem, na verdade talvez se qualifique sim.
Bitcoin surgiu inicialmente
como possível concorrente às moedas nacionais, controladas pelos governos há
aproximadamente 11 anos. O White Paper
original do Satoshi Nakamoto foi lançado no dia 31 de Outubro de 2008. A
estrutura e a linguagem do texto enviavam a seguinte mensagem: Essa moeda é
para especialistas em computação, não economistas nem especialistas políticos.
A circulação do artigo era limitada; os novatos que o leram ficaram confusos.
Mas a falta de interesse não impediu que a história seguisse seu curso. 2 meses
depois, aqueles que ficaram antenados viram o surgimento do “bloco inicial”, o
primeiro grupo de bitcoins gerado através do conceito do Nakamoto de um banco
de dados descentralizado que vive em cada computador da rede que deseja
hospedá-lo.
Aqui estamos 11 anos depois e uma negociação de um bitcoin vale atualmente
8.000 dólares americanos e já chegou a valer 20.000 dólares. A moeda é aceita
por milhares de instituições, ambas online e offline. Seu sistema de pagamento
é muito popular em países pobres que não possuem uma vasta infraestrutura
bancária mas também em países desenvolvidos. E grandes instituições – incluindo
o Banco Central Americano, a OCDE,
o Banco Mundial e grandes empresas de investimento – estão prestando bastante
atenção ao bitcoin.
Entusiastas, que são encontrados em diversos países, dizem que seu valor será
muito maior no futuro porque sua oferta é estritamente limitada e fornece um
sistema muito superior ao dinheiro fiat governamental, como por exemplo real,
dólar ou euro. O bitcoin é transferível diretamente de uma pessoa para outra
sem intermediários. O custo da transferência é relativamente baixo. A
quantidade de bitcoins é limitada e o número total é conhecido. É durável, tem
fungibilidade e é divisível: todas características críticas de uma moeda. E
também é um sistema que não depende de confiança e identificação e muito menos
de um banco central e de governos. É um novo sistema para a era digital.
Lições reais para um moeda real
Para aqueles educadas no
termo em inglês hard money
, que defende que o dinheiro real deve
ter um lastro em uma commodity
como o ouro ou a prata, a ideia toda tem
sido um verdadeiro desafio.
Falando por mim mesmo, eu tenho lido sobre bitcoin por pelo menos dois anos
antes de começar a entendê-lo. Tinha alguma coisa sobre a ideia que me
intrigava. Você não pode criar dinheiro do nada, muito menos com um código de
computador. Por ele tem valor então? Deve haver algo errado. Não é assim que
esperávamos que o dinheiro fosse reformado.
Esse é o problema: nossas expectativas. Nós deveríamos ter prestado mais
atenção ao que Ludwig von Mises escreveu
em sua teoria sobre a origem do dinheiro – não àquilo que achamos que ele
escreveu, mas ao seu verdadeiro significado.
Em 1912, Mises lançou seu The theory of Money and Credit . A obra teve grande impacto
na Europa quando chegou na Alemanha, e logo após foi traduzida para o inglês.
Ao mesmo tempo que cobria todo aspecto relacionada ao dinheiro, sua
contribuição principal foi quanto ao valor e preço do dinheiro – e não somente
do dinheiro em si – até as suas origens.
Dessa maneira, ele explicou como o dinheiro ganha valor em termos dos bens e
serviços que obtém.
Posteriormente ele chamou esse processo de “teorema de regressão” e, como se
vê, o bitcoin satisfaz todas as condições do teorema.
O professor do Mises, Carl Menger, demonstrou que o dinheiro em si é originado
no mercado – não do estado ou de um contrato social. Ele surge gradualmente à
medida que os empreendedores monetários buscam uma forma ideal de mercadoria
para troca indireta. Em vez de meramente trocar um com o outro, as pessoas
adquirem um bem não para consumir, mas para negociar. Esse bem se torna
dinheiro, a mercadoria mais comercializável.
Mas Mises acrescentou que o valor do dinheiro remonta no tempo ao seu valor
como uma mercadoria trocada. Mises disse que essa é a única maneira de o
dinheiro ter valor:
“A teoria do valor do
dinheiro, como tal, pode rastrear o valor de troca objetivo do dinheiro apenas
até o ponto em que deixa de ser o valor do dinheiro e se torna somente
meramente o valor de uma commodity. Se assim formos, cada vez mais, cada
vez mais longe, devemos finalmente chegar a um ponto em que não encontraremos
mais nenhum componente no valor objetivo de troca de dinheiro que surge de
avaliações baseadas na função da moeda como um meio comum de troca; onde o
valor do dinheiro não é outro senão o valor de um objeto que é útil de outra
maneira que não seja como dinheiro…. Antes era habitual adquirir bens no
mercado, não para consumo pessoal, mas simplesmente para trocá-los novamente
pelos bens que realmente eram desejados, e cada commodity individual só
era credenciada com esse valor dado pelas avaliações subjetivas baseadas na
utilidade direta”
A explicação de Mises resolveu um grande problema que há muito confundia
economistas. É uma narrativa da história conjectural e, no entanto, faz todo o
sentido. O sal teria se tornado dinheiro se ele fosse totalmente inútil? As
peles de castores teriam adquirido valor se elas não fossem utilizadas como
roupas? Prata ou ouro teriam valor monetária se não tivessem valor como commodity
antes? A resposta para todos os
casos analisando a história monetária é claramente não. O valor inicial do
dinheiro, antes de se comercializado como dinheiro, se origina de sua utilidade
direta. É uma explicação que é demonstrada através de reconstrução histórica.
Esse é o teorema da regressão de Mises.
Valor de uso do Bitcoin
À primeira vista, o bitcoin parecia ser
uma exceção. Não é possível usar bitcoin para outra função que não seja
dinheiro. Não pode ser usado como jóia. Você não pode fazer uma máquina com
ele. Você não pode comê-lo nem usá-lo como decoração. Seu valor é percebido
somente como uma unidade que facilita trocas indiretas. E assim, o bitcoin já é
dinheiro. É usado todos os dias. Você pode ver as trocas em tempo real. Não é
um mito. É realidade.
Parece como se tivéssemos que escolher. Mises estava errado? Talvez tenhamos
que reescrever sua teoria toda. Ou talvez seu ponto de vista fosse somente
histórico e não se aplicasse no futuro da era digital. Ou talvez seu teorema da
regressão fosse apenas uma prova de que o bitcoin fosse somente uma mania de
curto prazo insustentável, porque seu valor não pode ser reduzido ao seu valor
de utilidade como commodity.
E, no entanto, você não precisa recorrer a uma teoria monetária complicada para
entender à sensação de alarme em relação ao bitcoin. Muitas pessoas, como eu,
apenas tem um sentimento de desconforto em relação a um dinheiro que não tem
base em nada físico. Claro, você pode imprimir um bitcoin em um pedaço de
papel, mas ter um papel com um QR code ou uma chave pública não é o
suficiente para aliviar esse sentimento de desconforto.
Como podemos resolver esse problema? Na minha opinião, brinquei com o assunto por
mais de um ano. Isso me intrigou. Ponderei se o pensamento do Mises se
aplicaria somente a uma era pré-digital. Eu segui as especulações online de que
o valor do bitcoin seria zero, exceto para as moedas nacionais para as quais é
convertido. Talvez a demanda pelo bitcoin superasse as exigência dos cenários
de Mises por causa de uma necessidade desesperada de outra moeda diferente do
dólar.
Conforme o tempo passava – e eu li as obras de Konrad
Graf, Peter Surda, e Daniel
Krawisz – finalmente eu compreendi.
Vou direto ao ponto: Bitcoin é um sistema de pagamento e também dinheiro. O
sistema de pagamento é a fonte de valor, enquanto que a unidade de conta
meramente expressa o valor em termos de preço. Unidade de dinheiro e pagamento
é sua característica mais incomum, e foi isso que muitos tiveram problemas para
entender.
A maioria de nós está
acostumado em pensar em moeda separada do sistemas de pagamento.
Esse pensamento é reflexo das limitações tecnológicas da história. Existe o
dólar e existem os cartões de crédito. Existe o Euro e existe o PayPal. Existe
o Yen e existem serviços wireless. Em cada caso, a transferência de
dinheiro depende de provedores de serviços terceirizados. Para usá-los, você
precisa estabelecer o que é chamada de “relacionamento de confiança” com eles,
ou seja, a instituição que está organizando o acordo precisa acreditar que você
pagará.
Essa diferença entre dinheiro e pagamento sempre esteve conosco, exceto no caso
de proximidade física. Se eu lhe der um dólar pela sua fatia de pizza, não
haverá terceiros. Porém, sistemas de pagamento, terceiros e relacionamentos de
confiança se tornam necessários quando você deixa a proximidade geográfica. É
quando empresas como Visa e instituições como bancos se tornam indispensáveis.
Eles são o aplicativo que faz o software monetário fazer o que você quer que
ele faça.
O problema é que os sistemas de pagamento que temos hoje não estão disponíveis
para ninguém. De fato, a grande maioria da humanidade não tem acesso a essas
ferramentas, o que é um dos principais motivos da pobreza no mundo. Os
deprovidos de financiamento estão limitados apenas ao comércio local e não
podem estender suas relações comerciais com o mundo.
Um dos principais, se não o principal objetivo, de desenvolver o bitcoin era
resolver esse problema. O protocolo foi estabelecido para unir o recurso da
moeda com um sistema de pagamento. Os dois estão totalmente interligados na
estrutura do próprio código. Essa conexão é o que torna o diferente de qualquer moeda nacional
existente e, realmente, de qualquer moeda da história.
Veja diretamente no White Paper do Nakamoto.
Observe como o sistema de pagamentos é central no sistema monetário que ele
criou:
Uma versão puramente peer to peer de dinheiro eletrônico permitiria que
os pagamentos on-line fossem enviados diretamente de uma parte para outra sem
passar por uma instituição financeira. As assinaturas digitais fornecem parte
da solução, mas os principais benefícios são perdidos se um terceiro confiável
ainda for necessário para evitar gastos duplos. Propomos uma solução para o
problema dos gastos duplos usando uma rede peer to peer. A rede registra
o tempo das transações , colocando-as em hash em uma cadeia contínua de prova
de trabalho baseada em hash, formando um registro que não pode ser alterado sem
refazer a prova de trabalho. A cadeia mais longa
não serve apenas como uma prova da sequência dos eventos testemunhados, ela
serve também como uma prova de que ela veio do grupo com maior poder
computacional. Enquanto a maioria do poder computacional é controlada por nós
de rede que não estão cooperando para atacar a rede, eles vão gerar a maior
cadeia e ultrapassar os atacantes. A própria rede requer uma mínima estrutura.
As mensagens são transmitidas com o melhor esforço base e, os nós de rede podem
sair e se juntar a rede quando quiserem, aceitando a cadeia com a prova de
trabalho mais longa como uma prova do que aconteceu enquanto eles estiveram
fora da rede.
O que é mais impressionante neste parágrafo é que não há sequer uma menção à
própria unidade monetária. Há apenas a menção ao problema do gasto duplo (ou
seja, o problema da criação
inflacionária de moeda). A inovação aqui, inclusive de acordo com as palavras
do criador, é a rede de pagamento, não a moeda. A moeda ou unidade digital
apenas expressa o valor da rede. É uma ferramenta contábil que absorve e carrega o valor da rede através do tempo e
do espaço.
Essa rede é chamada de blockchain. É um livro contábil que fica na nuvem
digital, uma rede distribuída que pode ser observada em operação por qualquer
pessoa a qualquer momento.
É cuidadosamente monitorada por todos os usuários. Ela permite a transferência
de bits de informação seguros e não repetíveis de uma pessoa para qualquer
outra pessoa em qualquer lugar do mundo, e esses bits de informação são
protegidos por uma forma digital de título de propriedade. Isso é o que o
Nakamoto chamou de “assinaturas digitais”. Sua invenção do livro contábil que
fica na nuvem permite que os direitos de propriedade sejam verificados sem
precisar depender de alguma agência de confiança de terceiros.
A blockchain resolveu o que veio a ser conhecido como o problema dos
generais bizantinos. Esse é o problema de coordenar ações em um grande área
geográfica na presença de atores potencialmente maliciosos. Como os generais
separados pela distância precisam confiar nos mensageiros e essa confiança leva
tempo e confiança, nenhum general pode ter certeza absoluta de que o outro
general tenha recebido e confirmado a mensagem, muito menos sua precisão.
Colocando um livro-razão, ao qual todos têm acesso na intenet, resolve esse
problema. O livro registra os valores, os horários e os endereços públicos de
cada transação. As informações são compartilhadas em todo o mundo e sempre são
atualizadas. O livro contábil garante a integridade do sistema e permite que a
unidade monetária se torne uma forma digital de propriedade com um título.
Uma vez que você entende isso, você pode
ver que a proposta de valor do bitcoin está vinculada à sua rede de pagamento
anexada. Aqui é onde você encontra o valor de uso ao qual Mises se refere. Ele
não está incorporado na unidade monetária, mas no brilhante e inovador sistema
de pagamentos em que o bitcoin vive. Se fosse possível que o blockchain fosse
de alguma forma separado do bitcoin (e, realmente isso não é possível), o valor
da moeda instantaneamente cairia a zero.
Prova de
Conceito
Agora, para entender melhor como a teoria do Mises se
encaixa no Bitcoin, você precisa entender outro ponto referente à história da
criptomoeda. No dia do seu lançamento (9 de janeiro de 2009), o valor do
bitcoin era exatamente zero. E assim permaneceu por 10 meses após seu
lançamento. Durante todo o tempo, as transações estavam ocorrendo, mas não
havia valor postado acima de zero durante todo esse tempo.
O primeiro preço divulgado do bitcoin apareceu em 5 de outubro de 2009. Nesta
troca, $1 USD era igual a 1.309,03 Bitcoin (que muitos consideravam muito caro
na época). Em outras palavras, a primeira avaliação do bitcoin foi pouco mais
de um décimo de centavo.
Sim, se você tivesse comprado $100 USD em bitcoin naqueles dias, e não os
tivesse vendido em pânico, você seria meio bilionário hoje.
Então, aqui está a pergunta: o que aconteceu entre 9 de janeiro e 5 de outubro
de 2009 para fazer com que o bitcoin obtivesse um valor de mercado? A resposta é que comerciantes, entusiastas,
empreendedores e outros estavam experimentando o blockchain. Eles
queriam saber se funcionava. Transferiu as unidades sem gastar duas vezes? Um
sistema que dependia da energia voluntária computacional era suficiente para
verificar e confirmar as transações? Os bitcoins recompensados chegam ao lugar
certo como pagamento pelos serviços de verificação? Acima de tudo, esse novo
sistema realmente funcionou para fazer o aparentemente impossível – ou seja,
mover bits seguros de informações baseadas em títulos pelo espaço geográfico,
sem intermediárioss, mas de um ponto a outro (peer to peer)?
Foram necessários 10 meses para criar confiança. Levou mais 18 meses para o
bitcoin atingir a paridade com o dólar americano. Essa história é essencial para
entender, especialmente se você está confiando em uma teoria das origens do
dinheiro que especula sobre a pré-história do dinheiro, como faz o teorema da
regressão de Mises. Bitcoin nem sempre foi um dinheiro com valor.
Era uma vez uma unidade de contabilidade pura anexada a um livro. Esse livro
obteve o que Mises chamou de “valor de uso”. Todas as condições do teorema são
assim satisfeitas.
Conclusão
Para revisar, se alguém disser que o bitcoin se baseia em nada além do nada,
que não pode ser um dinheiro porque não tem um histórico real como uma commodity
genuína, e se a pessoa que diz isso é iniciante ou economista altamente
treinado, você precisa levantar dois pontos cruciais. Primeiro, o bitcoin não é
uma moeda independente, mas uma unidade de conta anexada a uma rede de
pagamento inovadora. Segundo, essa rede e portanto, o bitcoin apenas obtiveram
seu valor de mercado através de testes em tempo real em um ambiente de mercado.
Em outras palavras, depois de considerar os recursos técnicos deslumbrantes, o
bitcoin surgiu exatamente como qualquer outra moeda, do sal ao ouro. As pessoas
acharam o sistema de pagamento útil e a contabilidade anexa era portátil,
divisível, fungível, durável e escassa.
Nascia o dinheiro. Esse dinheiro tem todas as boas características de dinheiro
da história mas adiciona uma rede de pagamentos sem peso e sem espaço que
permite que o mundo inteiro transacione sem precisar de intermediários.
Mas observe algo extremamente importante aqui. O blockchain não é apenas
dinheiro. Trata-se de transferência de informações que exijam segurança,
confirmações e garantia total de autenticidade. Isso refere-se a contratos e
transações de todos os tipos, todos realizados peer to peer. Pense em um mundo sem intermediários,
incluindo o terceiro mais perigoso já concebido pelo homem: o próprio Estado.
Imagine esse futuro e você começará a entender a plenitude das implicações do
nosso futuro.
Mises ficaria maravilhado e surpreso com o bitcoin. Mas talvez ele também
sentisse uma sensação de orgulho que sua teoria monetária de mais de 100 anos
atrás tenha sido confirmada e ganhado nova vida no século XXI.
Jeffrey A. Tucker
Jeffrey Tucker é ex-diretor de
conteúdo do FEEE – Foundation for Economic Education. Ele é Diretor Editorial do AIER – American Institute for Economic Research, fundador do Liberty.me, Membro Honorário Distinto do Mises Brazil, consultor de economia do FreeSociety.com,
pesquisador do Acton Institute, consultor de políticas do Heartland Institute, fundador do CryptoCurrency Conference, membro
do conselho editorial da Molinari Review, e autor de diversos livros.